segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

SISTEMAS CONSTITUCIONAIS DE MATRIZ AMERICANA

Por Douglas Pinheiro e Yure Tenno
“Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América.” (Preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América) 1. Apresentação A figura habitual de um cidadão americano carregando com orgulho a bandeira de seu país ou expondo-a na fachada de sua casa é o estereótipo que o mundo tem de uma expressão de patriotismo com raízes muito complexas e profundas. Quando as treze colônias britânicas resolveram unir-se na busca de um ideal comum que exaltava a liberdade e o rompimento com os laços do sistema do Velho Continente, que refletisse seus ensejos do presente e fosse ao mesmo tempo símbolo de esperança para o futuro, não encontraram idéia que melhor lhes coubesse do que a de passar suas expectativas para o papel: a Carta Magna, tal como a Bíblia para alguns, assume lugar de prestígio na vida do virtuoso cidadão americano. Seu texto fundamental consta de sete artigos, divididos em secções. Agregados estão dez aditamentos sobre os direitos e garantias fundamentais (o Bill of Rights) e outros dezesseis acrescentados à Carta no decorrer de sua vida nos séculos XIX e XX. Mas o que torna esse texto de mais de 200 anos tão importante para a história humana é o conteúdo construído dentro do processo histórico mesmo; conteúdo esse que resguarda diretrizes e valores que iriam orientar toda a geração das formas estatais modernas como as conheceram. Três aspectos tomam maior vulto frente às demais formas organizacionais do Estado Americano, são eles: o federalismo, o controle constitucional e o presidencialismo, a serem analisados ao longo deste trabalho.
2. O modelo federalista americano À luz do pensamento de K.C.Wheare, “uma definição de estado federal que não contivesse os Estados Unidos deveria considerar-se irreal” (Federal government, Oxford, 1946). O dicionário Aurélio define o federalismo como uma “forma de governo pelo qual vários estados se reúnem numa só nação, sem perderem sua autonomia fora dos negócios de interesse comum”. A partir de tal definição, podemos formular um entendimento germinal do que vem a ser o estado federal. Mas, dentro de uma linha de pesquisa mais percuciente sobre o modelo americano, poderemos notar que seu federalismo constitucional não é de tão fácil dedução: pelo contrário, se constrói dentro de embates doutrinários e reticuladores. É só através do processo histórico que conseguimos enxergar as condições materiais em que se vai construindo o feitio do estado norte-americano, mas, decididamente, após a Guerra Civil, podemos vislumbrar algumas particularidades desse modelo: a) União – e não simples “liga” ou “associação” – de estados autônomos – mas não independentes nem soberanos – com o objetivo de prosseguir fins comuns, inscritos aliás liminarmente no “Preâmbulo” constitucional (estabelecimento da justiça, segurança, da tranqüilidade doméstica, defesa comum, promoção do bem-estar geral, garantia das “bênçãos de liberdade” para todas as gerações); b) Divisão “vertical” dos poderes políticos, com poderes explícitos federais e poderes implícitos com “fim legítimo”, como se conclui no USSC (caso McCulloch vs. Marilândia, 1819) e poderes residuais estatais (cf. 10º aditamento); c) Atuação direta e eficaz dos estados, nos seus precisos limites territoriais; d) Previsão e garantia de autogoverno estadual, com a criação de legislativo, executivo e judicial próprios; e) Larga autonomia legislativa dos estados, sobretudo em matérias de relações individuais, mas também em campos sensíveis como o direito penal (que ainda hoje origina a assimetria na abolição da pena capital e a necessidade de acordos de extradição interestaduais); f) Participação decisiva dos estados no procedimento de emenda constitucional (artigo 5º) e na ratificação da Constituição original (artigo 7º); g) Manutenção, pelo estados, de um poder político próprio e originário (isto é, não derivado nem delegado), traduzido na posse de leis fundamentais próprias, em alguns casos anteriores à própria Constituição federal; h) Supremacia dos órgãos soberanos de governo nacional (artigo 7º) i) Necessidade de conformação das normas estaduais à Constituição material da Federação; j) Possibilidade – teorizada desde o “caso Marbury” – de anulação pelo Supremo Tribunal Federal, sem apelo nem agravo, de legislação estadual considerada inconstitucional. (Nuno Rogeiro, Estudo sobre o sistema constitucional dos Est.Unidos, pp.119-120) Como podemos notar, as repartições das competências, a exemplo da delegação da representação internacional e soberania por parte da União e da larga autonomia dos estados em matéria de constituição de tribunais estaduais e etc, são pontos fundamentais para a construção de um federalismo, mas no decorrer do processo histórico, nota-se uma crescente concentração de faculdades deliberativas centradas nas mãos da União. Esse fenômeno pode encontrar explicação quando salientadas três razões: a) Exigência de eficácia funcional, derivada do aumento técnico de poderes do estado nacional, e verificação dos obstáculos ou ineficiência da atividade governamental nas unidades federadas, em muitos casos emergentes; b) Exigência de eficácia dimensional, que verificou que certas normas necessárias ao bem comum só se tornavam atuais quando aplicadas em todo o território da União, obrigando a criação de agências federais e de leis uniformes (o New Deal foi um exemplo); c) Exigência de eficácia internacional da Federação, sobretudo quando esta se começou a definir como superpotência capaz de intervir para além do hemisfério, obrigando ao fortalecimento de instituições e diretivas do poder nacional interno. (Nuno Rogeiro, op. cit. , p. 124) O doutrinador Nuno Rogeiro expõe que esta evolução “unionista” deu-se através de aditamentos, como o 14° e o 16°, sob a égide da teoria dos poderes implícitos ou por “chantagem assistencial”, uma concessão condicional de ajuda econômica federal aos Estados, mediante requisitos que podem passar pela adoção de normas específicas.
2.1. Bicameralismo como integrante obrigatório do sistema de governo federalista
“Quem quer que encare uma organização federal não mais pode deixar de conceber as instituições legislativas senão sob a forma de duas assembléias, sendo a representação dos federados igualitária em uma e proporcional na outra, à imagem do Senado e da Câmara dos Representantes” (Maurice Duverger, Os regimes Políticos). O texto supracitado de Duverger faz referência à organização legislativa criada pela Constituição americana de 1787, fruto de um “impasse” originado no decurso de sua construção. Os estados presentes à Convenção apoiaram o plano da Nova Jérsia, segundo o qual cada parte federada estabelecia uma representação fixa. Os estados grandes eram favoráveis a uma representação proporcional, como preferia a Virgínia. O acordo veio com o bicameralismo. Mas o sucesso desse sistema deriva, muito provavelmente, da criação do mecanismo de “checks and balances” intra-funcional. Em “The Federalist”, de Alexander Hamilton, o que ficou assente foi um Senado instituído pelos constituintes com o intuito de conter os ímpetos, por vezes “antidemocráticos”, da Câmara dos Representantes e, assim, funcionar como entidade moderadora dentro do órgão legislativo. Nuno Rogeiro chega a concluir a idéia de Madison dizendo que “o Senado, com mandatos mais longos, daria assim estabilidade ao congresso, representaria a essência da Federação e serviria de freio à eventual demagogia republicano-jacobina.” (Nuno Rogeiro, op. cit.).
3. O poder judicial e o Supremo como guardião da vontade geral A idéia de que o poder judicial é o guardião do espírito constitucional vem muito bem formulada nesta passagem do livro “The Federalist”: “Todavia, esta conclusão não deve significar uma superioridade do judiciário sobre o legislativo. Somente supõe que o poder do povo é superior a ambos e que, sempre que a vontade do legislador, traduzida nas suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando sua decisão pela lei básica, não pelas ordinárias”. Em 1803, o famoso caso Marbury vs. Madison fez o então juiz presidente Marshall estabelecer o marco doutrinário sobre o princípio de constitucionalidade que fez do Supremo Tribunal não só o ente de função decisória sobre litígios que concorrem embasados em documentos legais, como também fiscalizador desses documentos, avaliados, assim, à luz da Carta Constituinte de 1787, instituindo-se o esteio do controle constitucional: “Marshall profere então a sua interpretação das funções do Supremo ao analisar o caso. Começa por dizer que a função primeira da Constituição é a de enumerar, limitando-os, os poderes do Governo. E essa limitação só é eficaz se a Constituição se erguer acima das leis ordinárias formuladas por um dos ramos do Governo. E, sendo, por essa lógica, uma lei superior, terão de se invalidar os atos inferiores que a contrariem ou desrespeitem. A função dos tribunais é a de esclarecer o alcance das normas e aplicá-los aos casos concretos. (...) cabe ao Supremo Tribunal a revisão judicial de casos que possam advir de um choque ou dúvidas entre a lei fundamental e normas inferiores”.
4.O presidencialismo
O modelo de organização do poder proposto pela Carta Magna americana possui a prerrogativa de ter-se inspirado em moldes ideológicos já muito difundidos no contexto europeu e, mais do que isso, por ter aperfeiçoado antigos sistemas na tentativa de sanar seus vícios. Nessa perspectiva, a moderna separação dos poderes, proposta por Montesquieu, surge em consonância com a invenção do presidencialismo: se até então o exercício das funções executiva e legislativa dava-se por mútua dependência e influência, a partir de 1787 a ciência política assiste à ascensão de um sistema de poder cuja constituição – pelo menos teoricamente – defesa tal ato. Para quem vinha acompanhando o modelo inglês, era realidade quase inconcebível desligar-se de símbolos como o rei ou a assembléia no comando de um poder central representante das até então treze colônias, assim como havia o temor pelo abuso de poder do primeiro e pelos atos ludibriosos do segundo. Os constituintes americanos souberam “equilibrar os pratos da balança” ao concederem a chefia do executivo a um homem, no papel de líder, que pudesse ser fiscalizado pelos parlamentares, refletidos por todo um sistema de representação democrática. Há muito que se questionar acerca do fato de a governabilidade acabar comprometida quando a separação dos poderes é levada ao pé-da-letra, numa situação em que o presidente e parlamentares não entram em consenso, mas esta muitas vezes é uma questão meramente partidária e que pode ser resolvida quando da boa administração do “jogo político”: a distinção mais nítida de funções dá-se principalmente no âmbito da proteção jurídica para os dois lados, não podendo o presidente ser derrubado (exceto por processo criminal de impeachment), nem o parlamento dissolvido. Em suma, se pudermos comparar a figura do presidente com a de outros que exercem chefia de governo no mundo, notável será o fato de o modelo americano possibilitar um exercício muito mais autônomo e democrático do poder, escusando-se de vícios que outros sistemas deixam tão bem expostos. Nas palavras de Jorge Miranda, o modelo presidencialista é de “interdependência por coordenação: há diversos órgãos políticos que atuam com autonomia uns perante os outros nas suas esferas respectivas, mas que devem colaborar para a prática de certos atos preestabelecidos” (Manual de Direito Constitucional, Lisboa: Coimbra Editora, 1982, p. 136).
5. Conclusão Direito constitucional americano para os estadunidenses? O grande escrúpulo acerca do constitucionalismo americano é tentar conciliar a aceitação teórica de seu modelo como o mais apto a satisfazer os anseios republicanos com a pouca aplicabilidade integral do mesmo nos demais países do globo. De fato, embora boa parte da constituições da América Latina, por exemplo, acolha os princípios federalistas, presidencialistas e de controle judicial, o que se verifica é a prática política de apenas um ou alguns dos mesmos. Sem resquícios de dúvidas, há uma explicação histórico-cultural capaz de justificar tal obstáculo. Se nos remetermos ao velho continente europeu, será notório o fato de o presidencialismo lá não ter funcionado pelo secular temor de concentração de poderes na mão de um só homem: o modelo parlamentarista parece ter caído na preferência da população, ganhando ainda mais força com a formação de parlamentos internacionais como o da União Européia. Mesmo a França não aplica o presidencialismo a la americana, uma vez que o presidente, embora possuindo maiores poderes, tenha que conviver também com a figura de um primeiro-ministro. No tocante à América Latina, a herança histórico-cultural sobressai como empecilho ao estabelecimento de um sistema constitucional nos moldes do estadunidense. Seu passado de lutas contra colonizadores, a fragilidade econômica e o pluralismo partidário, reflexo de embates entre grupos, contribuíram firmemente para a construção de um cenário de instabilidade política. A inconstância das constituições – o Brasil é um típico exemplo – e o estabelecimento de regimes ditatoriais são apenas a “ponta do iceberg” de modelos que ensejam concentrar cada vez mais o poder nas mãos, sobretudo, do Executivo e, quando não o fazem, geram conflitos que provocam instabilidade e impedem a governabilidade. Acerca disso, a revista IstoÉ publicou reportagem que ilustra bem uma situação que vem se verificando no Brasil: “(...) com a imagem desgastada por seus próprios erros, o Legislativo vê a sua importância diminuída a cada dia. Executivo e Judiciário aproveitam-se da inoperância do Congresso para legislar em seu lugar. Acuado, o Congresso reage. Ao contrário do que prevê a Constituição, os Poderes da República hoje estão desequilibrados e desarmônicos. E, por conta disso, conflagrados.” IstoÉ, 26 Nov/2008, p. 40 Concluindo, podemos afirmar que teoricamente diversas nações seguem o modelo constitucional americano, mas a realidade prática parece sorrir apenas para os Estados Unidos. As circunstâncias históricas e políticas em que a carta de 1787 surgiu contribuíram para o desenvolvimento de um sistema que atendia muito mais às necessidades das treze colônias do que as de seus vizinhos latinos, povos europeus ou asiáticos. O novo nasceu numa terra de consciência política nova que soube libertar-se cedo das correntes de dominação e proclamar a liberdade de seus compatriotas. Enfim, o Direito constitucional americano parece ser para os estadunidenses.

3 comentários:

Douglas Pinheiro disse...

Um trabalho feito em um intervalo de tempo relativamente pequeno, mas que dá gosto de olhar!flw!

Yure Tenno disse...

É verdade!
E nós provamos que sem sacrifício não há vitoria.
Vlw

Anônimo disse...

o artigo ficou muito legal, me ajudou em uma pesquisa aki.
flw